9.12.05

"Dilemas modernos"

por José Manuel Fernandes

A polémica sobre os aviões da CIA que nos últimos anos passaram por aeroportos europeus é profundamente hipócrita e pode ter graves consequências.
Hipócrita, pois ignora que operações secretas devem ser mantidas secretas (claro que se pode defender que não deviam existir serviços secretos, mas até aí ninguém se atreveu a chegar). Hipócrita, porque contabiliza todos os voos e cria um clima de suspeição onde nada tem de ser provado, apenas insinuado. Hipócrita, porque omite terem alguns serviços secretos europeus colaborado e de eles próprios realizarem operações do mesmo tipo. Hipócrita, por fim, por se basear no pressuposto da ilegitimidade de transportar suspeitos de terrorismo para interrogatório, mas que ignora que é comum, na Europa, a prática da "devolução" de imigrantes ilegais ou de candidatos a asilo político que não são suspeitos de terrorismo, mas são entregues a países onde a tortura é prática corrente.

Centrar o debate nos "bons europeus" e nos "malvados americanos" pode contudo ter graves consequências, pois não permite distinguir o essencial - houve ou não recurso sistemático à tortura na luta antiterrorismo? Que métodos de interrogatório são aceitáveis e quais são os inaceitáveis? - do acessório. Por outro lado, apresentar erros aparentemente circunscritos na identificação de suspeitos (fala-se de uma ou duas dezenas em centenas de detenções ou "rendições") como sendo o padrão de actuação pode levar a que as fragilidades da cooperação internacional nesta luta nunca sejam ultrapassadas, pois a suspeição substituirá a confiança e a colaboração.

É indiscutível que boa parte do que está a acontecer decorre de políticas erradas e condenáveis dos Estados Unidos. O centro do problema chama-se Guantánamo, onde são mantidas num limbo legal centenas de suspeitos de ligações à Al-Qaeda. E é o centro do problema porque Guantánamo é política oficial nos EUA, ao contrário do que sucedeu em Abu Ghraib, prisão onde os abusos detectados e denunciados foram investigados, tendo os responsáveis pela sua ocorrência - dos soldados à oficial-general que comandava a prisão - sido condenados. Contudo, ambos os nomes são muitas vezes apresentados como sinónimos da mesma política.

Mas também se devia reconhecer que, para enfrentar a ameaça colocada por fanáticos que estão dispostos a morrer para matar o maior número possível de inocentes, a par com o difícil e demorado trabalho de infiltração das suas organizações, não haverá resultados se, ao detectar e deter um suspeito, o agente lhe disser - como vemos nos filmes americanos... - que tem o direito de não prestar declarações. Devia também ser assumido que a guerra contra o terrorismo não é uma guerra convencional nem é comparável aos conflitos clássicos, pelo que a comunidade internacional tem de estabelecer novas regras de conduta, moralmente rigorosas mas adaptadas à nova realidade, em vez de procurar, sem sucesso, aplicar as inaplicáveis regras das Convenções de Genebra. Desse ponto de vista, iniciativas como a do senador republicano John McCain, que proíbe a tortura em todas as circunstâncias, dentro e fora da América, devem ser apoiadas contra as resistências de parte da Administração americana, em especial do vice-presidente Dick Cheney. Assim como devem ser apoiadas a declaração de Condoleezza Rice na quarta-feira ou a decisão da Câmara dos Lordes britânica, que negou valor jurídico a uma informação obtida sob tortura.

Contudo, isso tem sido ofuscado pelos termos da discussão sobre os "aviões da CIA", agravada pelo comportamento errático de alguns políticos europeus que conheciam as operações e agora gostariam de ser transparentes.

Público, 9.12.05

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